Bicicleta é sustentável e tudo de bom. O automóvel é o diabo em metal, o mal de nossa sociedade. Que bom seria se a coisa fosse tão simples como alguns cicloativistas costumam propagandear. Confesso que não sei se este é o discurso hegemônico entre os ciclistas. Mas quem tem amor pela bicicleta e quer viver em uma cidade melhor deveria pensar muito bem no que diz e no que faz.
Declarar guerra ao automóvel é o equívoco capital de quem pensa ser revolucionário. Até consigo entender que ciclistas solteiros, de classe média, bem instruídos, empunhem a bandeira dessa dicotomia e alimentem a fobia ao automóvel. Nesse caso, advogam em causa própria e vendem para toda a coletividade o que aparentemente mais lhes convém. Mas poxa! E a dona-de-casa ou o trabalhador fazendo a compra do mês, como ficam? E as famílias com crianças? As pessoas que vivem sozinhas, apegadas a seus animaizinhos de estimação? E os heróis que levam horas para cruzar a cidade em meios de transporte motorizados? Eu não subestimaria a importância do automóvel para o aumento da mobilidade das pessoas e dos correlatos impactos positivos. Já imaginou a vida sem automóvel? O século 20 não seria o mesmo. O que seria dos ídolos norte-americanos dos anos 1950? E do James Bond se ele não tivesse um carrão? Creio que milhões de paulistanos também morreriam de tédio, sem poder fazer um rápido bate-e-volta na praia, no fim-de-semana…
Consequência quase irresistível dessa visão ingênua e simplista é estigmatizar quem usa o automóvel. No ano do bicentenário de nascimento de Charles Darwin, a lei do mais forte continua condicionando o discurso dos mais fracos: ciclistas se auto-retratam como vítimas de motoristas mal-educados, estressados, barbeiros, etc., mas raramente assumem que vitimizam pedestres. Dou aqui um testemunho: nos meus tempos de USP, não conheci colega que não quase havia sido atropelado por uma bicicleta ou xingado por um ciclista no fim de tarde. Também se tem a impressão de que ciclista que obedece as regras de trânsito em atenção ao pedestre também é peça rara. Seria só uma impressão?
As estatísticas de acidentes até podem dar sustentação a quem se vê tentado a botar a culpa no motorista. Ninguém discute que o potencial letal de um automóvel é muito maior do que o de uma bicicleta. Mas o que quero levantar aqui é a relação respeitosa que deveria existir entre os participantes do trânsito de uma cidade. Relação essa que, por preconceitos e posturas equivocadas, possíveis de serem identificadas em todos os grupos de atores, não existe em uma cidade como São Paulo. Por isso, se fosse cicloativista, levantaria a voz contra motoristas no mesmo tom em que procuraria entender como melhorar a convivência com pedestres – que, afinal, costumam ser o lado mais frágil dessa história toda. Além disso, pense em uma cidade como Brasília, projetada com vias largas para o fluxo ininterrupto de veículos em um futuro em que automóveis estariam acessíveis a toda classe trabalhadora. Teriam mesmo os motoristas culpa por andarem de carro? Ou a culpa seria do Lúcio Costa? Ou a culpa é de quem procura achar culpados?
Em terceiro lugar, se a bicicleta é mesmo o veículo do futuro, ainda ninguém me mostrou que seu processo de fabricação é ambiental e socialmente sustentável. Analise-se a cadeia de produção da magrela: de onde vem o aço, o alumínio, a fibra de carbono ou seja lá o que for para dar forma à estrutura do veículo? Como esse material é produzido? E os outros componentes da bicicleta: pneus, guidão, freios… Até onde sei, as grandes marcas nesse ramo estão longe de serem pequenas empresas que empregam mão-de-obra local eque são reconhecidas por suas práticas sustentáveis.
Por fim, o argumento esquisito de que automóveis são objetos particulares que roubam espaço público. E bicicletas são o quê? Bem público? Estacionadas ou em movimento, bicicletas também podem ser vistas como “tralhas” que atravancam a livre circulação de pedestres, que ocupam volume nos espaços de uso comum, que poluem a paisagem e que requerem investimentos da coletividade para uma infra-estrutura mínima (na forma de paraciclos, estacionamentos, ciclovias, sinalização etc.). Aqui também não está em jogo a dimensão do “ruído” que a bicicleta representa em relação a qualquer veículo motorizado, mas apenas a natureza do argumento. Até porque, de um certo modo, o espaço público existe para ser usado. Ou ruas, praças e parques são abertos para permanecerem vazios?
Pessoalmente, admiro muito os ciclistas que se aventuram diariamente pelas ruas da cidade. Mas acredito mesmo que parte do discurso cicloativista brasileiro poderia amadurecer e se libertar de velhos preconceitos e do beco sem saída dos radicalismos que os levam a falácias. Não estou fazendo apologia ao conformismo. Apenas alerto que nenhuma causa progressista sai vitoriosa com base na violência, na intolerância ou no unilateralismo. Quem quer mudar alguma coisa na cidade deveria se articular para produzir um discurso propositivo, construtivo e educativo. E, de preferência, de um modo genuinamente brasileiro: com criatividade, bom humor e buscando a integração de diversos segmentos e atores sociais. A busca ou pelo menos a propensão para um diálogo construtivo deveria ser entendida como uma premissa para a conquista de mais espaço para a bicicleta na cidade e para a emergência de uma cidade mais justa para todos que nela vivem.
Se for o caso, volto a esse tema outro dia, com algumas idéias de iniciativas que poderiam valer a pena.
Originalmente publicado no Planeta Sustentável em 05/02/2009, às 18:08