Armadilha das maiores para quem gosta do assunto é pensar mobilidade urbana exclusivamente em termos técnicos, como se fazia até há pouco e como se faz ainda hoje em certas rodinhas de engenheiros e de gente ligada ao gerenciamento do tráfego de veículos. Mas o planejamento urbano atual pode incorporar novas dimensões, como narrativas de usuários de meios de transporte urbano e a consideração de experiências pessoais. Hoje deixo aqui meu relato, o relato de alguém que usa, num dia comum, quatro meios de transporte diferentes da porta de casa à universidade. Uma variedade de sensações vem junto com essa rotina, que, admito, às vezes cansa…
O dia começa na correria. Em geral, desço as escadas do prédio às pressas, porque sempre estou à beira do atraso – seja por culpa de uma xícara a mais de chá no café-da-manhã, seja por aquela notícia do jornal, que a gente não consegue parar de ler. No porão, a bicicleta amarela sempre me passa uma falsa sensação de ter os pneus murchos. Já a necessidade de abaixar a cabeça para me adentrar ao porão é uma sensação nada falsa: o galo que minha cabeça ganhou nesta semana que o diga.
Aí, subo com a bicicleta os dois lances de escada até o térreo, passo com a bicicleta na estreita passagem entre o apartamento do térreo e as escadas. É exatamente nessa passagem que também fica estacionado um carrinho de bebê, que me força a fazer algum malabarismo com a bicicleta, a ficar tentado jogar alguma mandinga à mãe do bebê com seu carrinho e, por fim, a desistir disso ao pensar na difícil situação de quem tem bebê, carrinho e gente impaciente ao seu redor. De qualquer modo, quando chego à porta exterior do prédio, já dou meu aquecimento por completo.
Começo a pedalar já na calçada – o que é, no fundo, incorreto. Mas logo vou para o leito da rua. É uma delícia dar umas três ou quatro pedaladas e soltar a bicicleta na leve ladeira de uma das raras vias forradas de paralelepípedos, desses que chacoalham a bicicleta a ponto de se ouvir a campainha. Se necessário, os paralelepípedos também acordam de vez o condutor. Na esquina, lembro-me da regra número um do trânsito na Alemanha: quem vem da direita tem a preferência. Por isso, freio. Depois, busco energia para seguir por uma bizarra rua de mão dupla, paralela à linha de trem, por onde não passam dois carros. Projetaram a largura da rua de propósito para os carros não andarem tão rápido nessa zona residencial. Mesmo assim, alguns pisam fundo, 50 km/h, talvez 60 km/h. Um metro e meio de distância de ciclistas? Quase nunca.
Trafego pela área dedicada a bicicletas sobre a calçada até o sinal. Depois cruzo o calçadão, onde até certo tempo atrás tinha medo de fazer algo errado. Medo de pedalar entre a massa de gente que costuma atravessar o calçadão, e ser advertido. Só perdi esse medo quando achei a placa com a inscrição “Permitido andar de bicicleta”. A Alemanha adora placas e espera-se de todos (até mesmo de turistas) que elas sejam lidas e respeitadas. Na minha viagem até a universidade, encontro várias delas: umas úteis, outras estúpidas e, numa terceira categoria, as medonhas. (Acho que ainda escreverei sobre isso num dia desses.)
Minha próxima missão consiste em encontrar um lugar para estacionar a bicicleta. A estação de trem está em reforma, metade das vagas foram extintas. Há dias em que não se encontra um único poste livre. Paraciclos então, nem pensar. O mais comum é eu passar o cadeado num beco pouco atrativo e meio perigoso, de onde ladrões quase já levaram meu meio de transporte.
Aí pego o trem. É um trem interestadual vermelho, de dois andares. Na propaganda, eles dizem que o trem faz até 160 km/h. Na prática, ele sempre chega atrasado. Dois, três, às vezes dez minutos atrasado – o que já é um escândalo por aqui. Pior que o atraso, só mesmo é o cada-um-por-si para entrar no trem. Na maior cara-de-pau, as pessoas se colocam exatamente a sua frente para embarcar primeiro. Quando isso acontece, dou o troco na mesma moeda e faço o mesmo.
A viagem até a estação central de Hamburgo dura 10 minutos. É um tempo longo o bastante para não se fazer nada e curto o bastante para começar a ler alguma coisa boa. Em geral, opto pela segunda alternativa e saio com o que estiver lendo na mão. Na estação central, subo e desço em escadas apertadas, sujas e cheias de propaganda nas paredes. São corredores, plataformas e acessos estreitos, que não suportam tanta gente.
Aí embarco no metrô, que segue para o sul, por cima do rio. Para o metrô, não se precisa passar em catraca e o bilhete é raramente controlado. Além disso, a viagem dá praticamente direito a um concerto: basta sentar-se ao lado de algum moleque ou marmanjo. Ele está com fones espetados nos ouvidos, mas ouve alguma coisa em volume que daria para fazer festa no vagão. De hard rock a música oriental, já ouvi muita coisa, mas bom gosto musical é coisa rara.
Quando desembarco do metrô, preciso correr, se quiser pegar o ônibus da linha 142. Este é pontual e sai sempre alguns segundos depois que o metrô chega. Se não consigo, posso caminhar os cerca de 400 metros até meu destino ou acompanhar, pelo painel eletrônico instalado no ponto, o tempo que falta para o próximo veículo chegar. O ônibus é bem mais confortável, silencioso e limpo do que o metrô. E o melhor: informa por meio de letreiro e aviso sonoro qual a próxima estação. Assim, fica até difícil deixar de descer no ponto certo.
Tudo dura cerca de uma hora. Nela, vejo a cidade de diversas formas. Como ciclista, percebo o movimento de automóveis e de pessoas, sinto a textura do chão, vivo as condições do tempo. No trem, espelho-me em gente que migra para trabalhar, deixo para trás paisagens e bairros inteiros num piscar de olhos. No metrô, miro o rio e reflito sobre pessoas. No ônibus, estou quase lá, procuro me arrumar e me organizar para o dia que já começou faz tempo.
Originalmente publicado no Planeta Sustentável em 17/09/2009, às 17:44