De bicicleta, ela chegou em quinto

26 10 2008

Superando o trajeto de parte de seus compromissos políticos sobre duas rodas e posicionando-se claramente a favor do pedágio urbano, a comunicadora Soninha Francine ajudou a fazer do tema da mobilidade um dos principais da disputa pela Prefeitura da capital paulista. Com 4,19% dos votos válidos, a candidata pelo PPS não chegou ao segundo turno e, por sua história política, anunciou que não subiria no palanque de nenhum dos candidatos. O que não quer dizer que estará longe da política paulistana.

Recentemente, Soninha foi elogiada pelo prefeito e candidato à reeleição Gilberto Kassab, que — mesmo sem tê-la ao seu lado na campanha — teria orgulho de contar com ela em sua gestão. Soninha diz que o apoio de seu partido à reeleição de Kassab se baseia em compromissos políticos incorporados pelo candidato.

Por outro lado, desde que deixou o PT e se tornou candidata à prefeitura, Soninha e seu partido não perdem oportunidade para alfinetar o PT e a candidata Marta Suplicy. No entanto, mesmo a contragosto, pesquisas de intenção de voto mostram que a maior parte dos 266.978 eleitores de Soninha confiará seu voto a Marta Suplicy – e não a Kassab – no segundo turno.

Nesta entrevista por e-mail ao Pra lá e pra cá, Soninha está convencida de que ciclistas serão beneficiados pela próxima administração municipal, atribui sua “previsível” derrota também ao fato de ter saído do PT e relata um pouco das dificuldades que sentiu ao pedalar durante a campanha.

Sob qual ângulo sua não ida ao segundo turno pode ser considerada positiva?
A partir da análise muito realista de que as minhas chances de ganhar a primeira eleição majoritária que disputei eram muito pequenas… Portanto, não é uma “derrota” frustrante, mas um resultado previsível. E acho que posso dizer que a campanha foi vitoriosa em vários aspectos: pautamos alguns temas, despertamos interesse de pessoas que estavam totalmente descrentes de qualquer discussão política (inclusive as que ainda nem votam), demontramos que é perfeitamente possível se pautar em propostas e críticas, não em promessas bobas e ataques. Mesmo assim, é claro que eu preferia ir para o segundo turno – e demonstra que é possível vencer uma eleição sem abrir mão dos escrúpulos!

Como você compreende a derrota eleitoral da candidata Soninha nessa eleição? Foi sobretudo uma rejeição a suas idéias para a cidade ou uma indicação de que os paulistanos nao querem alguém “diferente” (como sua propaganda procurou enfatizar)?
Entendo que outros fatores pesaram mais: a desconfiança (por eu ser muito nova, por ter sido petista, por não ser mais petista…); o desconhecimento (até hoje, milhares de pessoas ainda nem sabem que eu existo, o que eu faço, como penso); o apego a candidatos mais antigos ou mesmo a rejeição a eles, que leva as pessoas a escolher quem tem mais chance de derrotá-los… Não foi tanto rejeição às idéias nem ao “diferente” (embora o conservadorismo tenha seu peso, naturalmente).

Como e quando você percebeu que o “pedágio urbano” seria uma boa idéia para a cidade de São Paulo?
Quando estudei as experiências bem-sucedidas das outras cidades e aprendi, por meio de demonstrações irrefutáveis, que o transporte individual é o grande responsável pelos congestionamentos (também já passei pela fase em que achava que eram os caminhões que atrapalhavam…). Estudei muito essa questão especialmente no começo de 2007, quando fiz parte da Comissão de Estudos sobre Aquecimento Global na Cidade de São Paulo; no fim do ano, participei de um seminário sobre pedágio urbano promovido pela Emplasa. Tenho total convicção de que as pessoas não usam automóvel apenas porque precisam, porque o transporte coletivo “não funciona”, mas também por hábito, apego, status social. É preciso melhorar o transporte público e estimular o seu uso, mas também é necessário desestimular o uso abusivo do transporte individual motorizado.

Você já chegou a pensar que seria um tiro no pé propor algo contra a liberdade de uso do automóvel justamente em uma cidade que até hoje vem sendo feita, em primeiro lugar, para os automóveis?
Eu sabia que poderia ser, mas não abriria mão disso de jeito nenhum, porque é o que eu acredito. E um dos problemas na política é que as pessoas vão deixando de defender aquilo em que acreditam, para não desagradar ninguém, não ofender o senso comum, não correr risco de perder votos…

Você sente a falta da estrutura partidária que o Partido dos Trabalhadores oferecia para desenvolver propostas para a cidade, por exemplo no campo da mobilidade urbana?
Não, porque o PPS tem técnicos em mobilidade com muito conhecimento e experiência – e total abertura para receber contribuições de pessoas de outros partidos, inclusive do PT ou ligadas ao PT, como aconteceu na construção do programa de governo… E isso faz toda a diferença.

O que tornou difícil utilizar a bicicleta em plena campanha eleitoral? Foi a falta de infra-estrutura? As longas distâncias? O comportamento dos motoristas nas ruas? Conte um pouco de sua experiência.
As longuíssimas distâncias tornaram impossível o uso de bicicleta em muitas situações de campanha – eu cheguei a percorrer 207 km em um dia pela cidade… Mas as outras dificuldades são as mesmas do dia-a-dia: falta de sinalização, de espaços seguros para circular e estacionar, de atenção, paciência e respeito dos motoristas… Embora eu tenha notado até uma atitude mais leve e compreensiva ao longo da campanha. Pode ser um efeito temporário, mas a tolerância aumentou um pouco, e creio que tem a ver com a maior exposição do assunto na mídia.

Sua neutralidade no segundo turno expressa também uma indiferença em relação às propostas para trânsito e transportes defendidas por Marta e Kassab?
Na verdade, a minha neutralidade significa que não vou tentar convencer as pessoas a votar neste ou naquele, mas não sou “neutra” na análise das propostas. Que não são, em si, muito diferentes – ambos prometem investir em metrô, corredores… Ambos negam estudar a implantação de pedágio urbano… Mas não devemos analisar apenas as propostas em si, e sim os fatos. Marta investiu muito mais em corredores que Kassab, mas deixou o “Fura Fila” parado. Kassab investiu mais em obras para bicicletas do que Marta, mas a operação dos corredores é problemática… Os dois têm suas qualidades e defeitos. Eu saí do PT porque os defeitos foram se acumulando demais para o meu gosto, mas respeito quem ainda acredita que o partido possa superá-los.

Nos próximos anos, valerá a pena atuar politicamente em São Paulo ou você prefere voltar à mídia e se dedicar a assuntos mais leves, como futebol?
Mesmo no futebol, tenho atuação política – na ONG “Gol Brasil”, na ESPN, na coluna da Folha… Mas isso não é suficiente pra mim. Quero fazer muito mais do que isso; por a mão na massa nas áreas de educação, meio ambiente, cultura, direitos humanos, população em situação de rua… Desenvolver projetos, exercer pressão sobre o governo, procurar influenciar políticas públicas. E monitorar a Câmara Municipal.

Você tem esperança de que algo melhore em São Paulo nos próximos 4 anos da gestão do(a) futuro(a) antigo(a) prefeito(a)? Se sim, em qual área?
Nos últimos 8 anos, melhoramos em muitos aspectos. Não há motivos para não acreditar que vários outros vão melhorar – porque o governo (seja ele qual for) já estará inclinado para isso ou porque a sociedade exercerá pressão. O “caso” das bicicletas é uma demonstração dessa pressão, capaz de mudar, aos poucos, a cultura dos políticos, técnicos e da população em geral em relação a elas. Essa área deve melhorar; a área de habitação também (o conceito de “moradia popular” evoluiu muito em relação ao pensamento das últimas décadas). Idem para Saúde e Educação. Mas infelizmente algumas coisas estão longe de melhorar – já há, por exemplo, muitos projetos aprovados para edifícios enormes em bairros sem condições de absorver o tráfego… A administração tem nós burocráticos terríveis… A politicagem interfere demais na gestão… Tem coisas que só eu teria interesse real em fazer diferente :o)

Originalmente publicado no Planeta Sustentável em 23/10/2008, às 17:06





De ponta-cabeça

27 09 2008

Quem sujou deve começar a limpar. Ou pagar pelo que fez. Este é, no fundo, o espírito geral do projeto de uma inédita Política Municipal de Mudança Climática, que o prefeito de São Paulo mandou, retirou e reenviou à Câmara Municipal no mês passado. Se aprovado ainda nesta legislatura, Gilberto Kassab até poderia se sentir motivado a posar como o “anjo verde” de nossa metrópole cinzenta nessa campanha eleitoral.

A parte da lei que faz menção aos transportes é exatamente a que causou bafafá na imprensa. Devido um suposto mal-entendido, o prefeito mandou protocolar o projeto de lei, abrindo a chance de implantação do pedágio urbano em São Paulo. A idéia em si é justificável do ponto de vista ambiental. Significaria cobrar dos principais poluidores pelas emissões de gases do efeito estufa. Mas o prefeito não gosta da idéia e os “sistemas de trânsito tarifado” sumiram do texto do projeto, em sua nova versão.

Entretanto, permanecem no texto idéias que, se implantadas, seriam bastante benéficas para a cidade: estímulo ao transporte não-motorizado, implantação de corredores de ônibus, ampliação da oferta de meios de transporte que utilizam fontes renováveis de energia, instituição da inspeção veicular… O setor de transporte responde por dois terços das 15 milhões de toneladas de gás carbônico emitidas anualmente na cidade de São Paulo. Por fazer essa conexão, é um projeto de fato bem diferente daqueles normalmente apresentados pela maioria dos nossos vereadores, que mal propõem outra coisa que não a alteração do nome das ruas da cidade.

O estado-da-arte dos princípios do planejamento urbano também está incorporado no texto do PL 524/2008. É penetrante a visão de uma cidade compacta, onde o solo é tratado como um bem valioso, a ser consumido com moderação e inteligência e onde residências e oportunidades de emprego estão bem distribuídos no espaço. O projeto de lei, enfim, defende uma São Paulo que é a antítese da cidade que conhecemos. O PL põe a cidade de ponta-cabeça.

No entanto, falta apoio da esfera federal e de organizações da sociedade civil, conforme aponta Joana Setzer, em seu trabalho de mestrado recém-apresentado à prestigiosa London School of Economics and Political Science. A pesquisa conclui que o grande problema para uma eficiente política endereçada à mudança climática não é a disponibilidade de recursos, mas a ineficácia da atuação dos governos para estabelecerem conexões entre suas ações e para mobilizar atores da sociedade civil para enfrentar esse desafio ambiental.

Originalmente publicado no Planeta Sustentável em 25/09/2008, às 16:09





É pique!

12 09 2008

É, minha amiga, meu amigo… Este blog, quem diria, comemora neste sábado seu primeiro aniversário aniversário. Aliás, sopra velinha junto com o autor do blog e, mais importante ainda, no mesmo dia em que o atual Plano Diretor da cidade de São Paulo foi publicado. Mas o Plano é assunto para outro dia. Retomarei hoje o assunto que mais me animou nesses últimos doze meses de posts.

Sexta-feira participei de uma excursão a Bohmte. Bohmte — nem os alemães sabem disso — é a única cidade alemã que implantou o conceito shared space, que poderia ser revolucionário em áreas delimitadas de cidades feitas quase que exclusivamente para automóveis, como São Paulo.

Shared Space

Shared Space: humanização do trânsito por meio do estranhamento

Eu já havia lido sobre shared space, visto fotos, vídeos. Mas nada como sentir-se sem saber o que fazer em um lugar onde as regras convencionais de repente não existem mais. Confesso que até para atravessar a rua foi estranho. Mas a idéia é justamente essa: obter segurança para todos a partir do sentimento de insegurança de cada um.

Parece ilógico, contraditório. Mas como ninguém sabe muito bem o que podem fazer, todos se comportam com muito mais cautela. Resultado: menos acidentes, menos mortes no trânsito. Semáforos, placas de trânsito, faixas de pedestres — enfim, a maioria das regras — desativam em nosso inconsciente a cautela que deveríamos ter. Ao ver o sinal verde, o motorista se sente amparado pela lei e pisa fundo, sem atentar ao que os outros fazem. Mesma coisa, o pedestre na calçada e o ciclista na ciclofaixa. Porque cada um se sente literalmente “o dono do pedaço”, ocorrem acidentes.

Servindo um delicioso bolo de ameixa, o prefeito Klaus Goedejohann recebe por semana duas levas de gente interessada em conhecer o lugar sem placas. Ele explica que, na verdade, o código nacional de trânsito ainda vale: preferência de quem vem pela direita e atenção constante no trânsito. Além disso, não se trata apenas de arrancar placas. O piso vermelho, todo ele no mesmo nível, e uma sutil compressão do espaço disponível para os grandes veículos também fazem parte do projeto, assim como uma atenção especial a pessoas com deficiências.

O shared space se estende por 400 metros ao longo da principal rua da cidadezinha de 7 mil habitantes e chega literalmente até as portas da igreja. Por ali, passam cerca de 13 mil veículos por dia, dos quais mil caminhões e 40% trânsito de passagem. Ocorriam 35 acidentes por ano. Desde maio, quando tudo ficou pronto, ninguém se machucou, nenhuma batida aconteceu.

Em Bohmte, o projeto só saiu mesmo do papel depois de vencidos todos os entraves burocráticos. As obras começaram em 12 de setembro do ano passado. Todo o projeto custou 2,1 milhões de euros. De acordo com o prefeito, o mesmo valor que custaria a renovação da rua nos moldes tradicionais. A cidade mesmo arcou com pouco mais de 70% do custo. O resto foi financiado com fundos da União Européia, do governo alemão e de outros parceiros.

Pior que os custos: o prefeito teve de enfrentar sobretudo funcionários da administração acostumados com pistas para veículos, calçadas e ciclovias. Fazê-los entender que se tratava de algo novo foi um processo tão moroso e travado, que por pouco não colocou tudo a perder. A permissão para o shared space só veio depois que cidade se comprometeu a refazer tudo do jeito que era, caso o novo conceito não desse certo.

É cedo para falar em resultados. Mas não é essa uma bela história? Vale lembrar: na Alemanha, para uma população de 80 milhões de habitantes, existem 20 milhões de placas de trânsito. A maioria delas, supérflua ou desnecessária, de acordo com uma organização especializada em transporte.


Aproveitando que o assunto chegou com um belo infográfico nas páginas da Superinteressante desse mês, vamos retomar o assunto pedágio urbano. E retomamos com notícias fresquinhas de Londres: os congestionamentos no centro — onde a cobrança vigora desde fevereiro de 2003 — voltaram no nível de antes da introdução do pedágio. Os opositores da restrição estão no clima “Tá vendo? Eu falei que isso não ia dar certo…”

Mas esse dado quer dizer que o pedágio não adiantou em nada? Peralá! Também não é assim. A medida levantou um belo dindim para o transporte público da cidade e contribuiu decisivamente para diminuir o volume de tráfego de automóveis particulares. Menos carros circulando, menos poluição também. Resultados melhores ainda são observáveis na área ocidental, onde o pedágio só existe desde 2007.

Mas isso tudo a gente só descobre, depois de se debruçar sobre as mais de 200 páginas do novo relatório publicado pela agência de transportes londrina. Relatório esse que é muito mais uma peça de marketing político do que um trabalho científico que busca alguma objetividade. Por isso, é preciso cuidado. Respostas a perguntas cruciais são deixadas de lado e os resultados negativos são apresentados de um modo tão sutil, que até espanta.

Originalmente publicado no Planeta Sustentável em 11/09/2008, às 17:01





A vez de Manchester

25 08 2008

Cidadãos da região metropolitana de Manchester, a terceira maior aglomeração do Reino Unido, estão prestes a ser convocados para uma votação histórica. Em um referendo, o povo dirá se quer ou não um pacote de investimentos para os transportes urbanos no montante de 3 bilhões de libras (algo em torno de R$ 9,25 bilhões). Detalhe: 2 bilhões de libras viriam de um fundo para transportes do governo britânico e o outro bilhão seria financiado via pedágio urbano de até 5 libras por dia, pagos pelos motoristas que trafegam no horário de pico.

Melhorar o transporte, todo mundo quer. Mas sob essa condição? Nesse momento, sociedade civil e governos estão divididos sobre a proposta. Os parlamentos de três localidades que compõem a metrópole se manifestaram contra o projeto. Outras seis cidades – incluindo Manchester, que concentra a maior parte dos problemas de tráfego – apóiam o plano anunciado pela entidade metropolitana AGMA.

Há quem pense que pedágio urbano em Manchester é bobagem. A opinião de um especialista em transportes: motoristas pagariam entre 800 e 900 libras a mais por ano para se deslocar ao centro da cidade e, mesmo assim, nem a qualidade do ar, nem o trânsito melhorariam. A associação Manchester Contra Pedágios taxou o dia do anúncio desse plano como “um péssimo dia para todos os motoristas do Reino Unido”.

O mentor desse bilionário plano de transportes defende a idéia dessa forma: “Manchester precisa de um moderno sistema de bondes, de trens urbanos mais velozes e, sobretudo, de menos carros nas ruas”. O plano prevê estender as linhas do transporte leve sobre trilhos por novos 22 quilômetros. Ainda de acordo com Lewis Atter, o crescente problema dos congestionamentos dentro e em volta de Manchester seria tanto um sinal do sucesso econômico da cidade como uma ameaça a seu futuro crescimento.

No fundo, Atter é um entusiasta de sua própria idéia, que chama de pedágio urbano de terceira geração — ainda melhor que o de Estocolmo e muito mais avançado que o de Londres. O sistema de cobrança seria sensível ao horário do dia, ao sentido de circulação dos automóveis e à área da cidade por onde eles circulam. Os veículos seriam identificados por um eficiente etiquetas eletrônicas. De fato, Manchester seria a primeira cidade a contar com um sistema tão aperfeiçoado de cobrança pelo uso das vias.

E o mais importante: nada feito às pressas. Se aprovado, o pedágio urbano de Manchester entraria em operação apenas em 2013, bem depois dos investimentos em transporte público e de seus efeitos positivos para a cidade. Lições para São Paulo: fomentar o debate público, dar voz aos cidadãos através de um mecanismo de participação direta, planejar mudanças estruturais no transporte em prazo independente do calendário eleitoral.

Originalmente publicado no Planeta Sustentável em 14/08/2008, às 04:46