É um livro fininho, menos de 200 páginas, mas que vai direto ao ponto. “Planejamento urbano” (Editora Ibpex) cobre a lacuna de explicar, sem devaneios ou teorias complexas, o que é planejamento urbano no Brasil do século 21. Tarefa fundamental e, ao mesmo tempo, quase impossível.
Nos últimos anos, o planejamento urbano tornou-se uma atividade aberta e de co-responsabilidade dos cidadãos. Para poder participar, todos nós deveríamos conhecer seus instrumentos, sua mecânica. Por outro lado, a prática do planejamento urbano nos municípios brasileiros permanece difusa.
Nessa entrevista, realizada por e-mail, o professor da Pontifícia Universidade Católica do Paraná e especialista em mobilidade urbana Fábio Duarte complementa o conteúdo de seu livro com exemplos e otimismo, explica como as cidades podem ser geridas com eficiência e diz por que a sustentabilidade ainda bate à porta do planejamento no Brasil.
Você é autor do livro editado no Brasil que representa o caminho mais direto para se entender o que é planejamento urbano. A quem se dirige o livro, em primeira instância?
O livro foi pensado para profissionais que trabalham em prefeituras. Principalmente em regiões mais distantes, é bem difícil ter acesso a materiais que apresentem uma visão ampla e em linguagem acessível sobre o planejamento urbano. Para eles é dedicado o livro.
Em que sentido é possível afirmar haver planejamento urbano em cidades brasileiras (ou seja, não acreditar que estamos à deriva)?
É quase um esforço de boa vontade imaginar que há planejamento urbano nas cidades brasileiras. Se São Paulo cresceu alheia a seu plano diretor por décadas, o que diríamos de cidades menores? Nossa sorte é que há quase 10 anos em nível federal temos o Estatuto da Cidade, que dá instrumentos realmente inovadores que podem ser usados por qualquer município brasileiro. Para o bom uso dos instrumentos, porém, é preciso uma compreensão global de quais são as vantagens e problemas das cidades atuais. E também para nossa sorte, há profissionais realmente empenhados em melhorar suas cidades em vários municípios brasileiros.
Você escreve que as cidades devem aprender a conviver com o mercado, sem se tornar um mero receptáculo de interesses imobiliários, por exemplo. Qual cidade brasileira nos dá, hoje em dia, exemplo na forma de um convívio produtivo e maduro com o mercado?
São Paulo, com algumas de suas operações urbanas (não todas) mostrou um amadurecimento da relação do poder público com o mercado. Depois do desastre da Operação Urbana Faria Lima, que desalojou os mais fracos economicamente sem lhes dar reais benefícios, outras operações, como Água Espraiada ou Carandiru, têm instrumentos mais maduros para capturar para os cofres públicos a valorização imobiliária que ocorrerá pelos próprios investimentos públicos, e daí terá caixa para reinvestir na área, mantendo a população residente. É ideal? Nunca é. Mas é uma melhoria tremenda para a gestão pública municipal.
Por que devemos saudar a incorporação de princípios da administração privada na gestão urbana?
Porque na administração privada o princípio da eficiência está em primeiro lugar: não posso gastar mais do que tenho; não posso trocar competência técnica por apadrinhamentos; tenho que aproveitar os recursos que tenho e deles gerar nossos recursos; tenho que satisfazer e dar satisfação a todos os clientes e empregados. Sim, há a crítica de que o cidadão não é um consumidor. Mas isto não justifica deixar de lado a excelência administrativa em nome de uma participação dirigida, como conhecemos no Brasil.
E onde a aplicação desses princípios pode ser percebida?
No nível municipal, Curitiba é um grande exemplo. Seu Instituto Municipal de Administração Pública é o órgão da Prefeitura que busca uma gestão estratégica e eficaz do município, para que as inovações nas áreas de transportes, meio ambiente e planejamento urbano continuem a ocorrer. E no nível estadual Minas Gerais é o melhor caso nos últimos 8 anos.
A quais resultados sua pesquisa sobre redes de mobilidade urbana desenvolvida na PUCPR já chegou?
O principal resultado da pesquisa é que a PUCPR, em Curitiba, decidiu desenvolver um plano de mobilidade para reduzir a dependência de carros e aumentar o uso de transportes coletivos e bicicletas, e melhorar as condições dos pedestres. O plano de mobilidade está em implantação – nunca na velocidade que gostaríamos, mas está caminhando. O mais importante, porém, não são as obras, e sim a corajosa decisão de uma universidade, que é um principais polos geradores de tráfego de qualquer cidade (só na PUCPR são 30 mil pessoas circulando diariamente, mais do que as cidades que precisam ter um Plano Diretor!), de assumir que causa um problema de trânsito e ambiental. E a partir daí, fazer um plano. Se cada grande gerador de tráfego (universidades, shopping center, grandes fábricas) tivesse coragem de assumir que é parte da causa do problema e se propusesse a fazer alterações para diminuir seu impacto negativo nas cidades, a mobilidade de nossas cidades melhoraria muito.
Depois de Curitiba, que cidades têm conseguido integrar planejamento de transportes com desenvolvimento urbano de forma inteligente no Brasil?
São Paulo, nos últimos 12 anos, vem fazendo alterações corajosas e positivas. Os corredores de ônibus em importantes avenidas como Santo Amaro e Nove de Julho; as bicicletas públicas em algumas estações de metrô e trem; a implantação de ciclovias; a eliminação do tráfego de caminhões em regiões centrais. Enfim, o trânsito na capital paulista é tão caótico, e as condições gerais de mobilidade são tão precários, que tais alterações não resolvem o problema. Mas se considerarmos a complexidade de se mexer em uma cidade deste tamanho, onde a falta de planejamento urbano por décadas fez com que a ocupação do solo estivesse totalmente descolada do transporte público, é louvável ver nos últimos dois governos, de partidos diferentes, a coragem de trazer boas soluções para a cidade.
A população das cidades brasileiras está envelhecendo. Em que medida essa transição demográfica estabelece novos desafios para as cidades brasileiras que, até agora, quando muito, tentaram dar conta da urbanização por inchaço?
Um idoso tem necessidades diferentes, é mais frágil em sua locomoção, mas também guarda valores que podem nos ajudar muito, como conhecimento maior da cidade, das pessoas, e têm mais paciência em ajudar os mais novos a gostar dos lugares onde vivem – para que os façam melhores; assim eles estarão mais agradáveis para nós mesmos, quando envelhecermos.
A seu ver, como a questão da sustentabilidade está sendo incorporada pelas práticas de planejamento urbano no Brasil?
Muito timidamente, com alguns poucos exemplos pontuais. Nos anos 80 e principalmente 90, Curitiba teve a coragem de propor soluções inovadoras, da coleta seletiva na origem (o habitante faz a separação em casa) até a criação de parques urbanos em áreas abandonadas (como pedreiras e fundos de vale). Propostas tão corajosas que, apesar de não se poder medir tecnicamente o quão ecológica a cidade é (e não é), não há como os críticos não reconhecerem que Curitiba vem sendo importante para se fazer a pauta mundial das cidades sustentáveis. Depois dela, nenhuma se destacou. As agências das bacias hidrográficas foi um enorme avanço para o Brasil. Infelizmente o aparelhamento das agências que vimos no último governo federal fez com que a Agência Nacional de Águas perdesse a forma necessária. A água é nosso principal recurso. Energia pode-se trazer de longe, comida também – até o lixo se exporta. Mas a água não, a água precisa estar à mão, tanto para consumo como por ainda ser o principal veículo de eliminação de rejeitos (cozinha, banheiro, chuvas, etc). Assim, tratar os rios urbanos e as bacias hidrográficas deveria ser a pauta número 1 das cidades no Brasil. O número único, se necessário.
Originalmente publicado no Planeta Sustentável em 20/05/2010, às 12:28