O importante é tomar decisões corajosas

24 10 2010

É um livro fininho, menos de 200 páginas, mas que vai direto ao ponto. “Planejamento urbano” (Editora Ibpex) cobre a lacuna de explicar, sem devaneios ou teorias complexas, o que é planejamento urbano no Brasil do século 21. Tarefa fundamental e, ao mesmo tempo, quase impossível.

Nos últimos anos, o planejamento urbano tornou-se uma atividade aberta e de co-responsabilidade dos cidadãos. Para poder participar, todos nós deveríamos conhecer seus instrumentos, sua mecânica. Por outro lado, a prática do planejamento urbano nos municípios brasileiros permanece difusa.

Nessa entrevista, realizada por e-mail, o professor da Pontifícia Universidade Católica do Paraná e especialista em mobilidade urbana Fábio Duarte complementa o conteúdo de seu livro com exemplos e otimismo, explica como as cidades podem ser geridas com eficiência e diz por que a sustentabilidade ainda bate à porta do planejamento no Brasil.


Você é autor do livro editado no Brasil que representa o caminho mais direto para se entender o que é planejamento urbano. A quem se dirige o livro, em primeira instância?
O livro foi pensado para profissionais que trabalham em prefeituras. Principalmente em regiões mais distantes, é bem difícil ter acesso a materiais que apresentem uma visão ampla e em linguagem acessível sobre o planejamento urbano. Para eles é dedicado o livro.

Em que sentido é possível afirmar haver planejamento urbano em cidades brasileiras (ou seja, não acreditar que estamos à deriva)?
É quase um esforço de boa vontade imaginar que há planejamento urbano nas cidades brasileiras. Se São Paulo cresceu alheia a seu plano diretor por décadas, o que diríamos de cidades menores? Nossa sorte é que há quase 10 anos em nível federal temos o Estatuto da Cidade, que dá instrumentos realmente inovadores que podem ser usados por qualquer município brasileiro. Para o bom uso dos instrumentos, porém, é preciso uma compreensão global de quais são as vantagens e problemas das cidades atuais. E também para nossa sorte, há profissionais realmente empenhados em melhorar suas cidades em vários municípios brasileiros.

Você escreve que as cidades devem aprender a conviver com o mercado, sem se tornar um mero receptáculo de interesses imobiliários, por exemplo. Qual cidade brasileira nos dá, hoje em dia, exemplo na forma de um convívio produtivo e maduro com o mercado?
São Paulo, com algumas de suas operações urbanas (não todas) mostrou um amadurecimento da relação do poder público com o mercado. Depois do desastre da Operação Urbana Faria Lima, que desalojou os mais fracos economicamente sem lhes dar reais benefícios, outras operações, como Água Espraiada ou Carandiru, têm instrumentos mais maduros para capturar para os cofres públicos a valorização imobiliária que ocorrerá pelos próprios investimentos públicos, e daí terá caixa para reinvestir na área, mantendo a população residente. É ideal? Nunca é. Mas é uma melhoria tremenda para a gestão pública municipal.

Por que devemos saudar a incorporação de princípios da administração privada na gestão urbana?
Porque na administração privada o princípio da eficiência está em primeiro lugar: não posso gastar mais do que tenho; não posso trocar competência técnica por apadrinhamentos; tenho que aproveitar os recursos que tenho e deles gerar nossos recursos; tenho que satisfazer e dar satisfação a todos os clientes e empregados. Sim, há a crítica de que o cidadão não é um consumidor. Mas isto não justifica deixar de lado a excelência administrativa em nome de uma participação dirigida, como conhecemos no Brasil.

E onde a aplicação desses princípios pode ser percebida?
No nível municipal, Curitiba é um grande exemplo. Seu Instituto Municipal de Administração Pública é o órgão da Prefeitura que busca uma gestão estratégica e eficaz do município, para que as inovações nas áreas de transportes, meio ambiente e planejamento urbano continuem a ocorrer. E no nível estadual Minas Gerais é o melhor caso nos últimos 8 anos.

A quais resultados sua pesquisa sobre redes de mobilidade urbana desenvolvida na PUCPR já chegou?
O principal resultado da pesquisa é que a PUCPR, em Curitiba, decidiu desenvolver um plano de mobilidade para reduzir a dependência de carros e aumentar o uso de transportes coletivos e bicicletas, e melhorar as condições dos pedestres. O plano de mobilidade está em implantação – nunca na velocidade que gostaríamos, mas está caminhando. O mais importante, porém, não são as obras, e sim a corajosa decisão de uma universidade, que é um principais polos geradores de tráfego de qualquer cidade (só na PUCPR são 30 mil pessoas circulando diariamente, mais do que as cidades que precisam ter um Plano Diretor!), de assumir que causa um problema de trânsito e ambiental. E a partir daí, fazer um plano. Se cada grande gerador de tráfego (universidades, shopping center, grandes fábricas) tivesse coragem de assumir que é parte da causa do problema e se propusesse a fazer alterações para diminuir seu impacto negativo nas cidades, a mobilidade de nossas cidades melhoraria muito.

Depois de Curitiba, que cidades têm conseguido integrar planejamento de transportes com desenvolvimento urbano de forma inteligente no Brasil?
São Paulo, nos últimos 12 anos, vem fazendo alterações corajosas e positivas. Os corredores de ônibus em importantes avenidas como Santo Amaro e Nove de Julho; as bicicletas públicas em algumas estações de metrô e trem; a implantação de ciclovias; a eliminação do tráfego de caminhões em regiões centrais. Enfim, o trânsito na capital paulista é tão caótico, e as condições gerais de mobilidade são tão precários, que tais alterações não resolvem o problema. Mas se considerarmos a complexidade de se mexer em uma cidade deste tamanho, onde a falta de planejamento urbano por décadas fez com que a ocupação do solo estivesse totalmente descolada do transporte público, é louvável ver nos últimos dois governos, de partidos diferentes, a coragem de trazer boas soluções para a cidade.

A população das cidades brasileiras está envelhecendo. Em que medida essa transição demográfica estabelece novos desafios para as cidades brasileiras que, até agora, quando muito, tentaram dar conta da urbanização por inchaço?
Um idoso tem necessidades diferentes, é mais frágil em sua locomoção, mas também guarda valores que podem nos ajudar muito, como conhecimento maior da cidade, das pessoas, e têm mais paciência em ajudar os mais novos a gostar dos lugares onde vivem – para que os façam melhores; assim eles estarão mais agradáveis para nós mesmos, quando envelhecermos.

A seu ver, como a questão da sustentabilidade está sendo incorporada pelas práticas de planejamento urbano no Brasil?
Muito timidamente, com alguns poucos exemplos pontuais. Nos anos 80 e principalmente 90, Curitiba teve a coragem de propor soluções inovadoras, da coleta seletiva na origem (o habitante faz a separação em casa) até a criação de parques urbanos em áreas abandonadas (como pedreiras e fundos de vale). Propostas tão corajosas que, apesar de não se poder medir tecnicamente o quão ecológica a cidade é (e não é), não há como os críticos não reconhecerem que Curitiba vem sendo importante para se fazer a pauta mundial das cidades sustentáveis. Depois dela, nenhuma se destacou. As agências das bacias hidrográficas foi um enorme avanço para o Brasil. Infelizmente o aparelhamento das agências que vimos no último governo federal fez com que a Agência Nacional de Águas perdesse a forma necessária. A água é nosso principal recurso. Energia pode-se trazer de longe, comida também – até o lixo se exporta. Mas a água não, a água precisa estar à mão, tanto para consumo como por ainda ser o principal veículo de eliminação de rejeitos (cozinha, banheiro, chuvas, etc). Assim, tratar os rios urbanos e as bacias hidrográficas deveria ser a pauta número 1 das cidades no Brasil. O número único, se necessário.

Originalmente publicado no Planeta Sustentável em 20/05/2010, às 12:28





A cidade, depois de amanhã

10 12 2008

Você já parou para pensar como será sua vida em 2050? Eu confesso que tive poucas oportunidades para me dedicar a esse assunto. Em algumas ocasiões, como entre amigos, conversamos sobre perspectivas de trabalho, sobre a crescente concentração de cabelos brancos e sobre a escalação do time de futebol no próximo campeonato. Mas no geral ficamos nos dois ou cinco anos seguintes ou, como disse, no próximo campeonato.

Há alguns meses estou envolvido na difícil missão de pensar a cidade em 2050. Como ela será? Quem está preocupado com essa pergunta é, sobretudo, o equivalente alemão do Ministério das Cidades, que convidou oito universidades para desenvolver respostas inovadoras e plausíveis.

Mas não é nada fácil se desplugar de 2008. Mesmo com incentivos para pensar livremente, freqüentemente nos vemos presos aos padrões atuais. Que tipo de moradias haverá em 2050? Televisão a cores, máquina de lavar e computador equiparam lares ocidentais nos últimos cinqüenta anos. E nos próximos anos, o que está para vir? E as escolas, como serão? Trabalharemos com quê? Onde? Serão as ruas como elas são hoje, com espaço para carros, com calçada, com faixas de pedestre? De tão amplas, as perguntas podem até parecer bobas à primeira vista. Mas são fundamentais.

Por acaso, caí em um grupo de trabalho que investiu tempo para desenvolver a visão do sistema de transporte do futuro. Nem trem-bala cruzando um corredor de arranha-céus em questao de segundos, nem minijatos atravessando o céu urbano, como no desenho animado. No futuro embarcaremos em um sistema modular, flexível e integrado, que poderá transportar tanto pessoas como mercadorias. Carros existirão, mas terão o uso rigorosamente restrito, por serem pouco eficientes no uso da área urbana e de recursos energéticos. No entanto, como demandas individuais e urgentes sempre aparecem, uma vertente do sistema terá de funcionar como táxi também.

Inspirados por essa fase criativa, estamos empenhados em aplicar parte dessas idéias no contexto concreto de uma cidade de verdade. A idéia é apresentar os resultados do trabalho em fevereiro, em Berlim, e no mês seguinte lancar uma publicação. O fato de o Estado promover essa iniciativa é bastante significativo. Mas, mesmo no Brasil, onde a gestão de problemas urgentes atropela diversas iniciativas de planejamento de prazo mais alargado, fiquemos atentos: nesta semana, acontece o Urban Age em São Paulo. Esperamos que os renomados especialistas – que vão de Saskia Sassen a Aldaiza Sposati – tenham tempo para fugir dos lugares-comuns e projetar algumas soluções para o futuro de nossas cidades.

Acima, a visão de Le Corbusier, um dos mais influentes arquitetos do século XX, para o centro de uma cidade moderna. Brasília, patrimônio cultural da humanidade desde 1987 conforme a Unesco, é fruto direto da crença na racionalidade e da estrita separação espacial das funções urbanas básicas.

Originalmente publicado no Planeta Sustentável em 04/12/2008, às 13:15





De ponta-cabeça

27 09 2008

Quem sujou deve começar a limpar. Ou pagar pelo que fez. Este é, no fundo, o espírito geral do projeto de uma inédita Política Municipal de Mudança Climática, que o prefeito de São Paulo mandou, retirou e reenviou à Câmara Municipal no mês passado. Se aprovado ainda nesta legislatura, Gilberto Kassab até poderia se sentir motivado a posar como o “anjo verde” de nossa metrópole cinzenta nessa campanha eleitoral.

A parte da lei que faz menção aos transportes é exatamente a que causou bafafá na imprensa. Devido um suposto mal-entendido, o prefeito mandou protocolar o projeto de lei, abrindo a chance de implantação do pedágio urbano em São Paulo. A idéia em si é justificável do ponto de vista ambiental. Significaria cobrar dos principais poluidores pelas emissões de gases do efeito estufa. Mas o prefeito não gosta da idéia e os “sistemas de trânsito tarifado” sumiram do texto do projeto, em sua nova versão.

Entretanto, permanecem no texto idéias que, se implantadas, seriam bastante benéficas para a cidade: estímulo ao transporte não-motorizado, implantação de corredores de ônibus, ampliação da oferta de meios de transporte que utilizam fontes renováveis de energia, instituição da inspeção veicular… O setor de transporte responde por dois terços das 15 milhões de toneladas de gás carbônico emitidas anualmente na cidade de São Paulo. Por fazer essa conexão, é um projeto de fato bem diferente daqueles normalmente apresentados pela maioria dos nossos vereadores, que mal propõem outra coisa que não a alteração do nome das ruas da cidade.

O estado-da-arte dos princípios do planejamento urbano também está incorporado no texto do PL 524/2008. É penetrante a visão de uma cidade compacta, onde o solo é tratado como um bem valioso, a ser consumido com moderação e inteligência e onde residências e oportunidades de emprego estão bem distribuídos no espaço. O projeto de lei, enfim, defende uma São Paulo que é a antítese da cidade que conhecemos. O PL põe a cidade de ponta-cabeça.

No entanto, falta apoio da esfera federal e de organizações da sociedade civil, conforme aponta Joana Setzer, em seu trabalho de mestrado recém-apresentado à prestigiosa London School of Economics and Political Science. A pesquisa conclui que o grande problema para uma eficiente política endereçada à mudança climática não é a disponibilidade de recursos, mas a ineficácia da atuação dos governos para estabelecerem conexões entre suas ações e para mobilizar atores da sociedade civil para enfrentar esse desafio ambiental.

Originalmente publicado no Planeta Sustentável em 25/09/2008, às 16:09